UM TEXTO INTERESSANTE (E LONGO)
Com o qual não concordo a 100% mas que obriga a uma reflexão profunda. Obviamente para quem gosta de pensar e não se rege por vulgatas ou "Readers Digest". A tradução é minha.
Nobody Gets Off the Bus: The Viet Nam Generation Big Book, Kali Tal and Dan Duffy, editores
Volume 5 Number 1-4 March 1994
State Rape: Representations of Rape in Viet Nam
Karen Stuhldreher, Political Science Department, University of Washington, Seattle
O acto de violar mulheres é visto pela maioria como uma consequência inevitável da guerra. Como o general George S. Patton predisse durante a Segunda Guerra Mundial, "ocorreriam inquestionavelmente violações".[i]. A violação e a mutilação de corpos das mulheres são parte do cenário militar usual na guerra. Durante a guerra de Vietname, a violação era uma ocorrência demasiado comum, descrita frequentemente pelos soldados como SOP (standard operating procedure) – procedimento padrão habitual[ii]. "É um caso diário... que pode imputar a quase todos… pelo menos uma vez", declarou um chefe de grupo do pelotão 34d de Companhia Charlie quando questionado por um repórter sobre a violação que ocorreu em My Lai[iii].3
Um outro soldado, Joe Galbally, ao testemunhar para a Winter Soldier Investigation[iv], concluiu o seu relatório sobre um incidente específico de uma violação colectiva dizendo, "este não foi apenas um incidente; este foi apenas o primeiro que consigo recordar. Eu sei de 10 ou 15 de tais incidentes, pelo menos." Galbally esteve no Vietname apenas durante um ano, de 1967-1968[v].
Na realidade, muito poucos soldados americanos foram "apanhados” por violação no Vietname. Apesar do facto de tal ser um crime de acordo com a lei internacional, proibido pela Convenção de Genebra e punível pela morte ou pela prisão sob o artigo 120 do American Uniform Code of Military Justice (Código de Justiça Militar do Uniforme Americano), os actos de violação foram raramente relatados e ainda mais raramente condenados durante a guerra do Vietname[vi]. O número dos casos de violação julgados não reflectiu, nem de perto, a violência e excesso de violações no Vietname. As taxas de condenação são baixas e as sentenças extremamente leves. Em Against Our Will (Contra a nossa vontade), Susan Brownmiller fornece estatísticas dos tribunais marciais para violações e penas relacionadas: apenas cinquenta e oito por cento dos julgados entre 1965 e 1973 foram condenados[vii]. A informação sobre as sentenças foi difícil de coligir, segundo Brownmiller. Escreve, “uma sentença de dois a oito anos de trabalhos forçados será a típica para violação, mesmo para os casos em que a vítima tenha sido assassinada; sodomia, tentativa de violação e tentativa de sodomia eram preferidas como acusações devido a menores molduras penais e as sentenças eram frequentemente reduzidas a metade pelo recurso”[viii].
São muitas e variadas as justificações para a relutância das forças armadas dos EUA em tratar a violação como uma ofensa criminal, e para a sua subsequente persistência, como uma prática comum no Vietname. Mas para a maior parte, tais racionalizações repousam na percepção geral da violação como uma extensão inevitável da actividade da guerra; é aceite, e mesmo incentivada, como modo da guerra sobre o qual pouco pode ser feito. O que está na base desta fina expressão e explanação simplista, como poderemos obter uma explicação mais convincente e mais crítica para o facto do porquê da violação se ter tornado “um caso diário” durante a guerra do Vietname?
Embora a questão da motivação possa parecer significativa para a aquisição de uma compreensão adicional do porquê da violação de mulheres vietnamitas se ter transformado em standard operating procedure, poderá não ser possível alcançar nenhumas conclusões decisivas sobre tais factores de motivação. Até que ponto devemos confiar nas representações de violação fornecidas primeiramente por soldados americanos, devemos preferivelmente dirigir as nossas questões sobre o modo como a violação foi representada durante a após a guerra. Como são representadas na cultura dominante contemporânea dos EUA as imagens de violação na guerra de Vietname? Além disso, por que razão estes actos permaneceram virtualmente sem serem relatados e perseguidos? Finalmente, pode haver uma ligação entre os modos como a violação no Vietname era e continua a ser representado e o facto de que apesar do seu excesso e violência, tenha merecido pouca atenção crítica pelos media ou pelas forças armadas.
No Vietname, de acordo com Jacqueline E. Lawson, "violar uma mulher vietnamita transformou-se numa marca da fase de guerrilha da guerra”. No seu artigo intitulado "She's a pretty woman... for a gook: The Misogyny of the Vietnam War” ( É uma mulher bonita... para gook[ix]: O misoginia na guerra do Vietname), Lawson explica que para" os jovens machos americanos desejosos em afirmar a sua superioridade, a sua potência e a sua masculinidade (e por extensão a do seu país),... violar uma mulher numa zona de combate é algo que um homem 'tem de fazer', 'deve fazer’, tem o ‘direito de fazer’[x]. A prática persistente de violação na guerra é evocativa da misoginia da guerra como extensão da hegemonia masculina. Lawson é muito explícita neste último ponto: "a guerra não cria misóginos (nem violadores)”. Ao invés uma "predisposição para misoginia, expressa explicitamente embora de maneira alguma maneira exclusivamente nos actos de violência contra as mulheres, é fabricado do mesmo modo que a cultura americana”[xi]. Abreviadamente, a “violação é uma parte da guerra porque a violação é parte de uma cultura centrada no homem”[xii]. Lawson vê a violação como resultado de um sistema dominado pelo género masculino; a violação é mais um crime violento do que um crime sexual contra as mulheres.
A análise crítica de Lawson da violação, no entanto, contrasta agudamente com a descrição de violação nos diversos filmes e nas numerosas novelas sobre a guerra. Baseadas nas histórias e nas narrativas de soldados americanos no Vietname, estas representações sugerem que a violação no Vietname "elevou sua cabeça como uma maneira aliviar o tédio enquanto os soldados praticavam as suas operações de busca e destruição nas terras altas do Vietname"[xiii]. Por exemplo, após ver negado o acesso aos bordeis fora da base, o sargento Tony Meserve (Sean Penn) em Casualties of War (Corações de Aço, 1989) informa seu esquadrão para um 'R&R'. "vamos requisitar uma rapariga para nós para quebrar o tédio e para manter o moral", explica Meserve.
Significativamente, as violações de mulheres vietnamitas por soldados americanos em filmes contemporâneos, tais como “Corações de Aço” e “Bravos do Pelotão” (Platoon, 1986), livros como o de Larry Heinemann, vencedor do Prémio Nacional do Livro (National Book Award), Paco’s Story e as narrativas de soldados americanos no Nam de Mark Baker emfatizam fortemente o sexo como um factor de motivação. As conversas de "R&R," "terem pouco divertimento" e "necessidade de uma tara" são comuns em tais cenas de violação. Enquanto estas representações de violação são inquestionavelmente violentas, a motivação fornecida pelas narrativas destaca visivelmente o aspecto sexual. Ou seja a linha entre o sexo e a violência torna-se esbatida nestes retratos populares da cultura dominante da guerra do Vietname e suas atrocidades.
Este esbater do sexo e da violência tem tudo a ver com a fonte e o contexto destas imagens de violação e do modo como são mediatizados para o consumo cultural. A violação de mulheres vietnamitas por homens americanos não é descrita pelas vítimas, que, na maior parte dos casos, foram assassinadas. Nem as mulheres, nem os vietnamitas estão no centro destas representações[xiv]. Ao contrário, os homens americanos (e sobretudo o homem branco americano) e a cultura hegemónica masculina transforma-se na fonte e no meio de produção através do qual a violação é representada. Quer examinemos “Corações de Aço” (baseado no livro de Daniel Lang e dirigido por Brian DePalma), Paco’s Story (uma novela por Larry Heinemann foi soldado de infantaria no Vietname), as violações nas quais ambos se tornam em produtos culturais são representadas do ponto de vista dos machos brancos americanos.
Ao discutir modos de representação, neste caso da violação na guerra do Vietname, é importante estar claro sobre a própria noção de representação. Mais simplesmente, a representação é uma cópia do "real," a "ausência de presença"[xv]. Porque o que é "real" nunca está completamente presente - os espectadores e os leitores - devemos estar cientes dos modos como "o real" é mediatizado através de práticas representacionais, como filmes ou na literatura. Como Michael Shapiro indica em The Politics of Representation, "perdemos algo quando pensamos na representação como mimética. O que perdemos, na generalidade, é introspecção nas instituições, nas acções e nos episódios através dos quais o real foi formado..."[xvi]. Esta formação, explica, é uma “imposição” histórica e culturalmente desenvolvida, que é " largamente institucionalizada pela maior parte dos significados inscritos profundamente em coisas, pessoas e estruturas"[xvii].
Considerações sobre o meio ou prática através da qual a violação é representada são vitais para qualquer discussão sobre o modo como é percepcionada e tratada. Ao examinar a violação e como é representada na cultura contemporânea dominante dos EUA, na maior parte das vezes através das experiências dos directores, dos escritores ou dos veteranos masculinos brancos, é importante manter em mente que estas representações possuem provavelmente o efeito de "reproduzir ou reforçar os modelos do poder prevalecente”[xviii]. Ao ponto em que a cultura hegemónica nos EUA reflecte um sistema dominado pelo género masculino, as representações culturais contribuirão para o reforço desta estrutura.
Examinemos algumas representações específicas de violação durante a guerra de Vietname, disponíveis no contexto da cultura contemporânea dominante dos EUA. A sua comunalidade é este contexto assim como o ponto de vista dos homens americanos brancos em cuja experiência estas histórias se centram. “Corações de Aço” foram adaptadas da visão de Lang 1969 de um incidente real de violação de um grupo de soldados no Vietname. De patrulha nas terras altas centrais em 1966, um grupo de cinco homens faz um desvio para fora do mapa para uma pequena vila vietnamita pequena com a intenção de sequestrar uma jovem mulher vietnamita. O seu motivo, precipitado por lhes ter sido negado o acesso aos bordeis na noite anterior, é claramente representado como de gratificação sexual, ou como nas palavras do líder da patrulha sergento Meserve, "um pouco de ' R&R’ portátil para os homens." A mulher que raptam, enquanto dorme ao lado da irmã, é escolhida porque é "a mais bonita". Não é denominada VC whore (puta vietcong)" até após um dos homens, osoldado Sven Eriksson (Michael J. Fox) questionar o rapto da patrulha e o seu tratamento brutal. Embora seja tratada brutalmente - amarrada, amordaçada, arrastada, esmurrada e atirada ao chão - pelos soldados desde o momento em que foi raptada até ser assassinada, é igualmente representada como um objecto sexual: "vamos ter algum gozo com ela". Após a ter violado, o sargento é inquirido por um dos homens, "quando foi a última vez que teve uma mulher a sério, Sargento?" Meserve responde, "ela era real, eu penso que era real." A violação de grupo em “Corações de Aço” não é apenas descrita como um acto de violência contra o inimigo, nem inteiramente como um acto do poder e de subjugação por parte dos homens brancos sobre uma mulher vietnamita. Enquanto a violência e a subjugação como formas de racismo e do sexismo são transmitidas nas imagens que circundam a violação, o desejo sexual masculino -- sexo pelo sexo – são igualmente uma motivação importante nesta representação da violação deste filme. Numa dramática construção da violação, Meserve sublinha esta intenção sexual mantendo a sua arma elevada e gritando, "o exército chama a isto uma arma, mas não é!". Então recita o familiar:
This is my weapon [içando a arma sobre a cabeça]
This is my gun [agarrando os testículos]
This is for fighting,
This is for fun.
A flagelação verbal dirigida aos soldados ou que se recusavam a participar ou que interferiam com uma violação de grupo fornece uma imagem adicional do significado dado à sexualidade (como que oposto ao género ou à raça) na representação da violação. Em “Corações de Aço”, a jovem "cereja" Erikkson, é representado como o "herói" e o protagonista do filme. Erikkson protesta o rapto, tenta parar a violação e recusa-se a participar nela. É insultado, chamado "panasca, "homosexual, "paneleiro" e "simpatizante dos VC" pelos outros homens. Nos “Bravos do Pelotão” o filme de Oliver Stone de 1986 vencedor do Óscar da Academia, Chris Taylor (Charlie Sheen) surpreende uma violação de grupo nos arbustos depois de uma vila próxima ter sido queimada. Enquanto tenta fisicamente pará-la os homens gritam, "O que és, um homossexual, Taylor?". O subentendido é que se um homem não quiser violar uma mulher, deve ser gay é indicativo – isto é indicativo do modo como a sexualidade é centrado em tais representações de violação. Embora a justificação para a violação na guerra seja frequentemente apresentada como racista ("é um ‘dink[xix]’ homem" – “Bravos do Pelotão”), ou misógina ("é uma puta vietcong" – “Corações de Aço”), a primeira (embora não a única) motivação é mais frequentemente apresentada como gratificação sexual[xx].
Na novela de Heinemann, Paco’s Story, porém, é a vingança que é apresentada como o catalizador para a horrífica e brutal violação de uma atiradora furtiva vietnamita que mata dois soldados americanos numa ronda nocturna imediatamente antes do alvorecer. Esta violação é claramente motivada pela raiva violenta e vingativa contra a jovem mulher Viet Cong:
e Gallagher finalmente tinha tido o suficiente. A coisa que seguinte sabes, James, agarrou-a pelo cabelo e estava jurando uma tempestade, arrastando-a desta maneira (o cuspo borbulha nos cantos de sua boca que tornando pouco claras as suas palavras) através da companhia deste tijolo para aquel buraco no estuque… Gallagher rodopiou-a para o quarto ao lado, sem dúvida um quarto de cama[xxi].
O contexto no qual esta cena de violação é apresentada também inclui uma descrição particularmente racista da vítima de violação:
Uma camponesa, não mais que catorze anos, digamos dezasseis. Não era carnuda. Nenhuma das vietnamitas era grande… Mas quem sabe, talvez as vietnamitas gostem de ser magras e raquíticas, remelosas e desdentadas. Talvez[xxii].
Todavia, apesar da brutalidade misógina e racista com que esta viciosa violação é descrita, não está ausente a imagem do desejo sexual masculino. Depois de uma descrição particularmente horrorizante de como a atiradora furtiva é presa e amarrado de modo tão firme que é forçada a dobrar seu corpo sobre uma prancha de madeira, os homens que se alinham para a violação são retratados deste modo:
Gallagher e Jonesy mostraram satisfação e quiseram rir, um par dos gajos riu, porque ninguém na companhia tinha tido uma rata por um mês de domingos (à excepção do tenente Stennet, que não tinha estado neste exército de homens há tanto tempo)[xxiii].
Mesmo nesta mais inumana descrição de violação no Vietname, a sexualidade masculina é incluída entre os factores motivantes. Nesta consideração, a violação é representada pelo menos em parte como um acto sexual bem assim como um crime violento contra as mulheres ou contra o inimigo. Abreviando, parece haver pouca distinção entre o sexo e a violência nas representações culturalmente produzidas de violação. Não coincidentemente estas imagens de violação na guerra de Vietname espelham as declarações dos soldados fornecidas durante a Winter Soldier Investigation em 1971. De acordo com o sargento Michael McClusker:
Era suposto irem atrás do que chamavam puta Viet Cong. Foram à aldeia e ao invés de a capturarem, violaram-na – todos os homens a violaram. Na realidade, um dos homens disse depois que fora a primeira vez que fizera amor com uma mulher de botas calçadas…Mas de qualquer modo violaram a rapariga e o último a fazer amor com ela deu-lhe um tiro na cabeça[xxiv].
De modo evidente, verifica-se alguma confusão aqui sobre a natureza da violação. Do ponto de vista masculino, a violação é equivalente a "fazer amor". A linha entre o sexo e violência é feita para parecer muito pouco clara nestas descrições. De Nam de Mark Baker:
Uma arma é poder. Para alguns homens andar permanentemente armados era como ter tesão permanente. Era uma descarga puramente sexual cada vez que tinham que premir o gatilho[xxv].
Esta coexistência entre sexo e violência é perturbante a vários níveis. Incomoda particularmente, sobretudo, quando considerando as consequências de apresentar a violação como um acto sexual, bem como um acto violento. Até ao ponto em que pouca distinção é traduzida entre o sexo e a violência, a violação das mulheres vietnamitas (bem como das mulheres americanas) representadas através destas imagens da guerra, pode ser considerada um resultado "natural" quando os homens são isolados das mulheres por longos períodos de tempo.
Pegue num grupo dos homens e coloque-os num lugar onde não haja nenhuma mulher de olhos redondos. Estão todos num ambiente masculino. Enfrentemo-lo. A natureza é a natureza. Há mulheres disponíveis. Tais mulheres são de uma outra cultura, de uma outra cor de uma outra sociedade. Não quer uma prostituta. Tem uma M-16. Porque há-de pagar a uma mulher? Desce à aldeia e obtêm o que procura[xxvi].
Esta explanação para o excesso e violência de violação durante a guerra de Vietname é indicativo da relutância da parte dos média, bem como das forças armadas em relatar e punir estes crimes de guerra. Esta noção que a violação é sexualmente motivada e consequentemente o resultado lógico do desejo sexual masculino, entronca directamente nos mitos de que a violação é espontânea e vitima-precipitada. Estas crenças podem não pesar tanto na guerra, onde questões como o que a vítima quer são discutíveis e onde a violação é standard operating procedure; porém, continuando a dar forma ao conceito total de violação, estes mitos ajudam a explicar porque a violação no Vietname durante a guerra (como nos EUA) foi tão raramente relatada e investigada, sendo as taxas de condenação extremamente baixas.
Finalmente estas representações de violação como consequência de desejo sexual masculino descontrolado conduzem de novo à justificação simplista: “os rapazes serão rapazes" (boys will be boys). Como podem as forças armadas conter e responsabilizar homens que se limitam a reproduzir os papéis masculinos para cujo desempenho a sociedade os preparou?
Retornando momentaneamente a análise de Jacqueline Lawson sobre a violação como misógina, é importante notar até que ponto ela também, confia demasiado em descrições de violação tal como apresentadas por veteranos do Vietname, aproxima-se perigosamente da coexistência entre o sexo e a violência. Embora eu tenha discutido que seu conceito de violação parece virar-se para a violência e não para a sexualidade, não é totalmente claro que seja este o caso. Ao questionar a percepção popular de que a proliferação de actos violentos contra as mulheres durante a guerra de Vietname é exclusivamente uma consequência dos perigos da guerra, Lawson escreve: "este confortável mas sedutora visão ignora as reais ligações entre o sexo e a violência que existem na nossa cultura, ligações que ajudam a tornar a guerra possível"[xxvii]. Quando a sua intenção é explicar a violação na guerra do Vietname como um produto da opressão sistemática das mulheres na sociedade americana, Lawson fá-lo fazendo colapsar a luxúria masculina com o poder e, por extensão, com a misoginia[xxviii].
A coexistência do sexo e da violência, reflexo das descrições de violação fornecidas por soldados americanos, surge da incapacidade de distinguir sexualidade de género[xxix]. A misoginia e desvalorização das mulheres que enformam os nossos códigos culturais são reflexo de um sistema dominante do género masculino. Tais atitudes para com as mulheres não são um produto de diferenças essenciais ou biológicas entre homens e mulheres. Nem a misoginia é uma extensão do desejo masculino. Contrariamente, são geradas social e culturalmente pelos padrões do género que ditam as vidas dos homens e das mulheres. Basta-nos olhar para as imagens de desejo sexual produzidas sobre gays e lésbicas para verificarmos que o género não é determinante da sexualidade. Assim, os actos de violência contra as mulheres devem ser entendidos não como crimes sexuais mas como crimes de género[xxx]. Necessitamos de dessexualizar a violação para que possa ser vista pelo que é: a consequência trágica de processos políticos, económicos e sociais que geraram e mantêm o domínio sobre as mulheres em todos os domínios culturais.
Para este propósito a representação da violação deve ser reconstruída, não para reproduzir ou reforçar os modos prevalecentes do poder, mas para os desafiar. As visões correntes da guerra do Vietname foram mediatizadas através da cultura dominante e claramente centrada nas experiências e percepções do homem branco americano. Das produções cinematográficas e literárias de Oliver Stone e Larry Heinemann baseadas nas suas próprias experiências, às descrições baseadas em descrições dos veteranos que lá estiveram, estas representações falham ao não contestar a concepção da violação como um comportamento com motivação sexual.
Se pretendermos avançar na compreensão da violação como um comportamento criminoso e persegui-lo enquanto tal, então deveremos representá-lo como aquilo que é: um crime violento motivado pelo género, um crime contra as mulheres apenas porque são mulheres
O facto de as representações de violação se conformarem às modalidades dominantes do poder, deve ser contestado. As consequências da não confrontação das representações actuais de violação são grandes. As mulheres continuarão a viver no medo, e continuarão a ser responsabilizadas pelos crimes contra elas. Muitas violações continuarão a não ser denunciadas e perseguidas e as taxas de condenação continuarão a ser desproporcionalmente baixas. Por outro lado, a sexualidade e o desejo permanecerão mirrados e o desejo sexual feminino será negado e tornado invisível. Enquanto a violência for ligada à sexualidade nas representações de violação, o reino do desejo sexual e suas representações também serão distorcidas e mal entendidas.
[i] Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape (New York: Simon and Schuster) 1975: 31.
[ii] Ibid.: 110.
[iii] Ibid.: 104-105.
[iv] A "Winter Soldier Investigation" foi um acontecimento promovido pelos média e patrocinado pela Vietnam Veterans Against the War (Veteranos do Vietname contra a Guerra) destinado a tornar conhecidos os crimes de guerra e atrocidades levadas a cabo pelas forças armadas dos EUA e seus aliados no decurso da Guerra do Vietname. O encontro de três dias reuniu 109 veteranos e 16 civis e teve lugar em Detroit (Michigan), entre 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 1971 (Nota do tradutor).
[v] Ibid.: 110.
[vi] Ibid.: 32.
[vii] Ibid.: 99.
[viii] Ibid.: 101.
[ix] Nome depreciativo dado pelos americanos aos sudueste asiáticos (Nota do tradutor).
[x] Jacqueline E. Lawson, "'She's a pretty woman... for a gook': The Misogyny of the Vietnam War," in Philip K. Jason, ed., Fourteen Landing Zones: Approaches to the Literature of the Vietnam War. University of Iowa Press. 1991: 17.
[xi] Ibid.: 4.
[xii] Ibid.: 18.
[xiii] Brownmiller: 32.
[xiv] Desejo agradecer a Susan Jeffords pela sua perspective de quem ocupa o centro destas representações de violação. O seu artigo em Discourse, "Performative Masculinities, ou 'After a few times you won't be afraid of rape at all,'" discute-o em profundidade.
[xv] Michael J. Shapiro, The Politics of Representation. Madison: University of Wisconsin Press. 1988: xii.
[xvi] Ibid.
[xvii] Ibid.
[xviii] Ibid.
[xix] Vietnamita em sentido pejorativo (Nota do tradutor).
[xx] David Rabe, guião, Casualties of War (Columbia Pictures) 1989.
[xxi] Esta distinção entre justificação e motivação para a violação neste contexto não se destina a ser dura e rápida. Eu observei esta distinção nos filmes aqui tratados. Todavia, acredito que, mais frequentemente, tal como a linha entre sexo e violência, a linha entre o que é motivação e o que é justificação se esbatem. O racismo, por exemplo, articula-se como um factor de motivação para a violação na Guerra.
[xxii] Larry Heinemann, Paco's Story. New York: Penguin. 1986: 175.
[xxiii] Ibid.: 179.
[xxiv] Ibid.: 180.
[xxv] Brownmiller: 110.
[xxvi] Mark Baker, Nam. New York: William Morrow. 1981: 206.
[xxvii] Ibid.
[xxviii] Lawson: 3.
[xxix] Ibid.
[xxx] Esta distinção entre sexualidade e género foi por mim abordada em pormenor num artigo sobre as representações do desejo heterosexual feminino: É igualmente uma distinção importante para as teorias gays e lésbicas. Veja-se Gail Rubin, "Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality," in Carol S. Vance, ed., Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Boston: Routledge & Kegan Paul. 1984; e igualmente Teresa de Lauretis, "Sexual Indifference and Lesbian Representation," in Theater Journal (May 1988).
Volume 5 Number 1-4 March 1994
State Rape: Representations of Rape in Viet Nam
Karen Stuhldreher, Political Science Department, University of Washington, Seattle
O acto de violar mulheres é visto pela maioria como uma consequência inevitável da guerra. Como o general George S. Patton predisse durante a Segunda Guerra Mundial, "ocorreriam inquestionavelmente violações".[i]. A violação e a mutilação de corpos das mulheres são parte do cenário militar usual na guerra. Durante a guerra de Vietname, a violação era uma ocorrência demasiado comum, descrita frequentemente pelos soldados como SOP (standard operating procedure) – procedimento padrão habitual[ii]. "É um caso diário... que pode imputar a quase todos… pelo menos uma vez", declarou um chefe de grupo do pelotão 34d de Companhia Charlie quando questionado por um repórter sobre a violação que ocorreu em My Lai[iii].3
Um outro soldado, Joe Galbally, ao testemunhar para a Winter Soldier Investigation[iv], concluiu o seu relatório sobre um incidente específico de uma violação colectiva dizendo, "este não foi apenas um incidente; este foi apenas o primeiro que consigo recordar. Eu sei de 10 ou 15 de tais incidentes, pelo menos." Galbally esteve no Vietname apenas durante um ano, de 1967-1968[v].
Na realidade, muito poucos soldados americanos foram "apanhados” por violação no Vietname. Apesar do facto de tal ser um crime de acordo com a lei internacional, proibido pela Convenção de Genebra e punível pela morte ou pela prisão sob o artigo 120 do American Uniform Code of Military Justice (Código de Justiça Militar do Uniforme Americano), os actos de violação foram raramente relatados e ainda mais raramente condenados durante a guerra do Vietname[vi]. O número dos casos de violação julgados não reflectiu, nem de perto, a violência e excesso de violações no Vietname. As taxas de condenação são baixas e as sentenças extremamente leves. Em Against Our Will (Contra a nossa vontade), Susan Brownmiller fornece estatísticas dos tribunais marciais para violações e penas relacionadas: apenas cinquenta e oito por cento dos julgados entre 1965 e 1973 foram condenados[vii]. A informação sobre as sentenças foi difícil de coligir, segundo Brownmiller. Escreve, “uma sentença de dois a oito anos de trabalhos forçados será a típica para violação, mesmo para os casos em que a vítima tenha sido assassinada; sodomia, tentativa de violação e tentativa de sodomia eram preferidas como acusações devido a menores molduras penais e as sentenças eram frequentemente reduzidas a metade pelo recurso”[viii].
São muitas e variadas as justificações para a relutância das forças armadas dos EUA em tratar a violação como uma ofensa criminal, e para a sua subsequente persistência, como uma prática comum no Vietname. Mas para a maior parte, tais racionalizações repousam na percepção geral da violação como uma extensão inevitável da actividade da guerra; é aceite, e mesmo incentivada, como modo da guerra sobre o qual pouco pode ser feito. O que está na base desta fina expressão e explanação simplista, como poderemos obter uma explicação mais convincente e mais crítica para o facto do porquê da violação se ter tornado “um caso diário” durante a guerra do Vietname?
Embora a questão da motivação possa parecer significativa para a aquisição de uma compreensão adicional do porquê da violação de mulheres vietnamitas se ter transformado em standard operating procedure, poderá não ser possível alcançar nenhumas conclusões decisivas sobre tais factores de motivação. Até que ponto devemos confiar nas representações de violação fornecidas primeiramente por soldados americanos, devemos preferivelmente dirigir as nossas questões sobre o modo como a violação foi representada durante a após a guerra. Como são representadas na cultura dominante contemporânea dos EUA as imagens de violação na guerra de Vietname? Além disso, por que razão estes actos permaneceram virtualmente sem serem relatados e perseguidos? Finalmente, pode haver uma ligação entre os modos como a violação no Vietname era e continua a ser representado e o facto de que apesar do seu excesso e violência, tenha merecido pouca atenção crítica pelos media ou pelas forças armadas.
No Vietname, de acordo com Jacqueline E. Lawson, "violar uma mulher vietnamita transformou-se numa marca da fase de guerrilha da guerra”. No seu artigo intitulado "She's a pretty woman... for a gook: The Misogyny of the Vietnam War” ( É uma mulher bonita... para gook[ix]: O misoginia na guerra do Vietname), Lawson explica que para" os jovens machos americanos desejosos em afirmar a sua superioridade, a sua potência e a sua masculinidade (e por extensão a do seu país),... violar uma mulher numa zona de combate é algo que um homem 'tem de fazer', 'deve fazer’, tem o ‘direito de fazer’[x]. A prática persistente de violação na guerra é evocativa da misoginia da guerra como extensão da hegemonia masculina. Lawson é muito explícita neste último ponto: "a guerra não cria misóginos (nem violadores)”. Ao invés uma "predisposição para misoginia, expressa explicitamente embora de maneira alguma maneira exclusivamente nos actos de violência contra as mulheres, é fabricado do mesmo modo que a cultura americana”[xi]. Abreviadamente, a “violação é uma parte da guerra porque a violação é parte de uma cultura centrada no homem”[xii]. Lawson vê a violação como resultado de um sistema dominado pelo género masculino; a violação é mais um crime violento do que um crime sexual contra as mulheres.
A análise crítica de Lawson da violação, no entanto, contrasta agudamente com a descrição de violação nos diversos filmes e nas numerosas novelas sobre a guerra. Baseadas nas histórias e nas narrativas de soldados americanos no Vietname, estas representações sugerem que a violação no Vietname "elevou sua cabeça como uma maneira aliviar o tédio enquanto os soldados praticavam as suas operações de busca e destruição nas terras altas do Vietname"[xiii]. Por exemplo, após ver negado o acesso aos bordeis fora da base, o sargento Tony Meserve (Sean Penn) em Casualties of War (Corações de Aço, 1989) informa seu esquadrão para um 'R&R'. "vamos requisitar uma rapariga para nós para quebrar o tédio e para manter o moral", explica Meserve.
Significativamente, as violações de mulheres vietnamitas por soldados americanos em filmes contemporâneos, tais como “Corações de Aço” e “Bravos do Pelotão” (Platoon, 1986), livros como o de Larry Heinemann, vencedor do Prémio Nacional do Livro (National Book Award), Paco’s Story e as narrativas de soldados americanos no Nam de Mark Baker emfatizam fortemente o sexo como um factor de motivação. As conversas de "R&R," "terem pouco divertimento" e "necessidade de uma tara" são comuns em tais cenas de violação. Enquanto estas representações de violação são inquestionavelmente violentas, a motivação fornecida pelas narrativas destaca visivelmente o aspecto sexual. Ou seja a linha entre o sexo e a violência torna-se esbatida nestes retratos populares da cultura dominante da guerra do Vietname e suas atrocidades.
Este esbater do sexo e da violência tem tudo a ver com a fonte e o contexto destas imagens de violação e do modo como são mediatizados para o consumo cultural. A violação de mulheres vietnamitas por homens americanos não é descrita pelas vítimas, que, na maior parte dos casos, foram assassinadas. Nem as mulheres, nem os vietnamitas estão no centro destas representações[xiv]. Ao contrário, os homens americanos (e sobretudo o homem branco americano) e a cultura hegemónica masculina transforma-se na fonte e no meio de produção através do qual a violação é representada. Quer examinemos “Corações de Aço” (baseado no livro de Daniel Lang e dirigido por Brian DePalma), Paco’s Story (uma novela por Larry Heinemann foi soldado de infantaria no Vietname), as violações nas quais ambos se tornam em produtos culturais são representadas do ponto de vista dos machos brancos americanos.
Ao discutir modos de representação, neste caso da violação na guerra do Vietname, é importante estar claro sobre a própria noção de representação. Mais simplesmente, a representação é uma cópia do "real," a "ausência de presença"[xv]. Porque o que é "real" nunca está completamente presente - os espectadores e os leitores - devemos estar cientes dos modos como "o real" é mediatizado através de práticas representacionais, como filmes ou na literatura. Como Michael Shapiro indica em The Politics of Representation, "perdemos algo quando pensamos na representação como mimética. O que perdemos, na generalidade, é introspecção nas instituições, nas acções e nos episódios através dos quais o real foi formado..."[xvi]. Esta formação, explica, é uma “imposição” histórica e culturalmente desenvolvida, que é " largamente institucionalizada pela maior parte dos significados inscritos profundamente em coisas, pessoas e estruturas"[xvii].
Considerações sobre o meio ou prática através da qual a violação é representada são vitais para qualquer discussão sobre o modo como é percepcionada e tratada. Ao examinar a violação e como é representada na cultura contemporânea dominante dos EUA, na maior parte das vezes através das experiências dos directores, dos escritores ou dos veteranos masculinos brancos, é importante manter em mente que estas representações possuem provavelmente o efeito de "reproduzir ou reforçar os modelos do poder prevalecente”[xviii]. Ao ponto em que a cultura hegemónica nos EUA reflecte um sistema dominado pelo género masculino, as representações culturais contribuirão para o reforço desta estrutura.
Examinemos algumas representações específicas de violação durante a guerra de Vietname, disponíveis no contexto da cultura contemporânea dominante dos EUA. A sua comunalidade é este contexto assim como o ponto de vista dos homens americanos brancos em cuja experiência estas histórias se centram. “Corações de Aço” foram adaptadas da visão de Lang 1969 de um incidente real de violação de um grupo de soldados no Vietname. De patrulha nas terras altas centrais em 1966, um grupo de cinco homens faz um desvio para fora do mapa para uma pequena vila vietnamita pequena com a intenção de sequestrar uma jovem mulher vietnamita. O seu motivo, precipitado por lhes ter sido negado o acesso aos bordeis na noite anterior, é claramente representado como de gratificação sexual, ou como nas palavras do líder da patrulha sergento Meserve, "um pouco de ' R&R’ portátil para os homens." A mulher que raptam, enquanto dorme ao lado da irmã, é escolhida porque é "a mais bonita". Não é denominada VC whore (puta vietcong)" até após um dos homens, osoldado Sven Eriksson (Michael J. Fox) questionar o rapto da patrulha e o seu tratamento brutal. Embora seja tratada brutalmente - amarrada, amordaçada, arrastada, esmurrada e atirada ao chão - pelos soldados desde o momento em que foi raptada até ser assassinada, é igualmente representada como um objecto sexual: "vamos ter algum gozo com ela". Após a ter violado, o sargento é inquirido por um dos homens, "quando foi a última vez que teve uma mulher a sério, Sargento?" Meserve responde, "ela era real, eu penso que era real." A violação de grupo em “Corações de Aço” não é apenas descrita como um acto de violência contra o inimigo, nem inteiramente como um acto do poder e de subjugação por parte dos homens brancos sobre uma mulher vietnamita. Enquanto a violência e a subjugação como formas de racismo e do sexismo são transmitidas nas imagens que circundam a violação, o desejo sexual masculino -- sexo pelo sexo – são igualmente uma motivação importante nesta representação da violação deste filme. Numa dramática construção da violação, Meserve sublinha esta intenção sexual mantendo a sua arma elevada e gritando, "o exército chama a isto uma arma, mas não é!". Então recita o familiar:
This is my weapon [içando a arma sobre a cabeça]
This is my gun [agarrando os testículos]
This is for fighting,
This is for fun.
A flagelação verbal dirigida aos soldados ou que se recusavam a participar ou que interferiam com uma violação de grupo fornece uma imagem adicional do significado dado à sexualidade (como que oposto ao género ou à raça) na representação da violação. Em “Corações de Aço”, a jovem "cereja" Erikkson, é representado como o "herói" e o protagonista do filme. Erikkson protesta o rapto, tenta parar a violação e recusa-se a participar nela. É insultado, chamado "panasca, "homosexual, "paneleiro" e "simpatizante dos VC" pelos outros homens. Nos “Bravos do Pelotão” o filme de Oliver Stone de 1986 vencedor do Óscar da Academia, Chris Taylor (Charlie Sheen) surpreende uma violação de grupo nos arbustos depois de uma vila próxima ter sido queimada. Enquanto tenta fisicamente pará-la os homens gritam, "O que és, um homossexual, Taylor?". O subentendido é que se um homem não quiser violar uma mulher, deve ser gay é indicativo – isto é indicativo do modo como a sexualidade é centrado em tais representações de violação. Embora a justificação para a violação na guerra seja frequentemente apresentada como racista ("é um ‘dink[xix]’ homem" – “Bravos do Pelotão”), ou misógina ("é uma puta vietcong" – “Corações de Aço”), a primeira (embora não a única) motivação é mais frequentemente apresentada como gratificação sexual[xx].
Na novela de Heinemann, Paco’s Story, porém, é a vingança que é apresentada como o catalizador para a horrífica e brutal violação de uma atiradora furtiva vietnamita que mata dois soldados americanos numa ronda nocturna imediatamente antes do alvorecer. Esta violação é claramente motivada pela raiva violenta e vingativa contra a jovem mulher Viet Cong:
e Gallagher finalmente tinha tido o suficiente. A coisa que seguinte sabes, James, agarrou-a pelo cabelo e estava jurando uma tempestade, arrastando-a desta maneira (o cuspo borbulha nos cantos de sua boca que tornando pouco claras as suas palavras) através da companhia deste tijolo para aquel buraco no estuque… Gallagher rodopiou-a para o quarto ao lado, sem dúvida um quarto de cama[xxi].
O contexto no qual esta cena de violação é apresentada também inclui uma descrição particularmente racista da vítima de violação:
Uma camponesa, não mais que catorze anos, digamos dezasseis. Não era carnuda. Nenhuma das vietnamitas era grande… Mas quem sabe, talvez as vietnamitas gostem de ser magras e raquíticas, remelosas e desdentadas. Talvez[xxii].
Todavia, apesar da brutalidade misógina e racista com que esta viciosa violação é descrita, não está ausente a imagem do desejo sexual masculino. Depois de uma descrição particularmente horrorizante de como a atiradora furtiva é presa e amarrado de modo tão firme que é forçada a dobrar seu corpo sobre uma prancha de madeira, os homens que se alinham para a violação são retratados deste modo:
Gallagher e Jonesy mostraram satisfação e quiseram rir, um par dos gajos riu, porque ninguém na companhia tinha tido uma rata por um mês de domingos (à excepção do tenente Stennet, que não tinha estado neste exército de homens há tanto tempo)[xxiii].
Mesmo nesta mais inumana descrição de violação no Vietname, a sexualidade masculina é incluída entre os factores motivantes. Nesta consideração, a violação é representada pelo menos em parte como um acto sexual bem assim como um crime violento contra as mulheres ou contra o inimigo. Abreviando, parece haver pouca distinção entre o sexo e a violência nas representações culturalmente produzidas de violação. Não coincidentemente estas imagens de violação na guerra de Vietname espelham as declarações dos soldados fornecidas durante a Winter Soldier Investigation em 1971. De acordo com o sargento Michael McClusker:
Era suposto irem atrás do que chamavam puta Viet Cong. Foram à aldeia e ao invés de a capturarem, violaram-na – todos os homens a violaram. Na realidade, um dos homens disse depois que fora a primeira vez que fizera amor com uma mulher de botas calçadas…Mas de qualquer modo violaram a rapariga e o último a fazer amor com ela deu-lhe um tiro na cabeça[xxiv].
De modo evidente, verifica-se alguma confusão aqui sobre a natureza da violação. Do ponto de vista masculino, a violação é equivalente a "fazer amor". A linha entre o sexo e violência é feita para parecer muito pouco clara nestas descrições. De Nam de Mark Baker:
Uma arma é poder. Para alguns homens andar permanentemente armados era como ter tesão permanente. Era uma descarga puramente sexual cada vez que tinham que premir o gatilho[xxv].
Esta coexistência entre sexo e violência é perturbante a vários níveis. Incomoda particularmente, sobretudo, quando considerando as consequências de apresentar a violação como um acto sexual, bem como um acto violento. Até ao ponto em que pouca distinção é traduzida entre o sexo e a violência, a violação das mulheres vietnamitas (bem como das mulheres americanas) representadas através destas imagens da guerra, pode ser considerada um resultado "natural" quando os homens são isolados das mulheres por longos períodos de tempo.
Pegue num grupo dos homens e coloque-os num lugar onde não haja nenhuma mulher de olhos redondos. Estão todos num ambiente masculino. Enfrentemo-lo. A natureza é a natureza. Há mulheres disponíveis. Tais mulheres são de uma outra cultura, de uma outra cor de uma outra sociedade. Não quer uma prostituta. Tem uma M-16. Porque há-de pagar a uma mulher? Desce à aldeia e obtêm o que procura[xxvi].
Esta explanação para o excesso e violência de violação durante a guerra de Vietname é indicativo da relutância da parte dos média, bem como das forças armadas em relatar e punir estes crimes de guerra. Esta noção que a violação é sexualmente motivada e consequentemente o resultado lógico do desejo sexual masculino, entronca directamente nos mitos de que a violação é espontânea e vitima-precipitada. Estas crenças podem não pesar tanto na guerra, onde questões como o que a vítima quer são discutíveis e onde a violação é standard operating procedure; porém, continuando a dar forma ao conceito total de violação, estes mitos ajudam a explicar porque a violação no Vietname durante a guerra (como nos EUA) foi tão raramente relatada e investigada, sendo as taxas de condenação extremamente baixas.
Finalmente estas representações de violação como consequência de desejo sexual masculino descontrolado conduzem de novo à justificação simplista: “os rapazes serão rapazes" (boys will be boys). Como podem as forças armadas conter e responsabilizar homens que se limitam a reproduzir os papéis masculinos para cujo desempenho a sociedade os preparou?
Retornando momentaneamente a análise de Jacqueline Lawson sobre a violação como misógina, é importante notar até que ponto ela também, confia demasiado em descrições de violação tal como apresentadas por veteranos do Vietname, aproxima-se perigosamente da coexistência entre o sexo e a violência. Embora eu tenha discutido que seu conceito de violação parece virar-se para a violência e não para a sexualidade, não é totalmente claro que seja este o caso. Ao questionar a percepção popular de que a proliferação de actos violentos contra as mulheres durante a guerra de Vietname é exclusivamente uma consequência dos perigos da guerra, Lawson escreve: "este confortável mas sedutora visão ignora as reais ligações entre o sexo e a violência que existem na nossa cultura, ligações que ajudam a tornar a guerra possível"[xxvii]. Quando a sua intenção é explicar a violação na guerra do Vietname como um produto da opressão sistemática das mulheres na sociedade americana, Lawson fá-lo fazendo colapsar a luxúria masculina com o poder e, por extensão, com a misoginia[xxviii].
A coexistência do sexo e da violência, reflexo das descrições de violação fornecidas por soldados americanos, surge da incapacidade de distinguir sexualidade de género[xxix]. A misoginia e desvalorização das mulheres que enformam os nossos códigos culturais são reflexo de um sistema dominante do género masculino. Tais atitudes para com as mulheres não são um produto de diferenças essenciais ou biológicas entre homens e mulheres. Nem a misoginia é uma extensão do desejo masculino. Contrariamente, são geradas social e culturalmente pelos padrões do género que ditam as vidas dos homens e das mulheres. Basta-nos olhar para as imagens de desejo sexual produzidas sobre gays e lésbicas para verificarmos que o género não é determinante da sexualidade. Assim, os actos de violência contra as mulheres devem ser entendidos não como crimes sexuais mas como crimes de género[xxx]. Necessitamos de dessexualizar a violação para que possa ser vista pelo que é: a consequência trágica de processos políticos, económicos e sociais que geraram e mantêm o domínio sobre as mulheres em todos os domínios culturais.
Para este propósito a representação da violação deve ser reconstruída, não para reproduzir ou reforçar os modos prevalecentes do poder, mas para os desafiar. As visões correntes da guerra do Vietname foram mediatizadas através da cultura dominante e claramente centrada nas experiências e percepções do homem branco americano. Das produções cinematográficas e literárias de Oliver Stone e Larry Heinemann baseadas nas suas próprias experiências, às descrições baseadas em descrições dos veteranos que lá estiveram, estas representações falham ao não contestar a concepção da violação como um comportamento com motivação sexual.
Se pretendermos avançar na compreensão da violação como um comportamento criminoso e persegui-lo enquanto tal, então deveremos representá-lo como aquilo que é: um crime violento motivado pelo género, um crime contra as mulheres apenas porque são mulheres
O facto de as representações de violação se conformarem às modalidades dominantes do poder, deve ser contestado. As consequências da não confrontação das representações actuais de violação são grandes. As mulheres continuarão a viver no medo, e continuarão a ser responsabilizadas pelos crimes contra elas. Muitas violações continuarão a não ser denunciadas e perseguidas e as taxas de condenação continuarão a ser desproporcionalmente baixas. Por outro lado, a sexualidade e o desejo permanecerão mirrados e o desejo sexual feminino será negado e tornado invisível. Enquanto a violência for ligada à sexualidade nas representações de violação, o reino do desejo sexual e suas representações também serão distorcidas e mal entendidas.
[i] Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape (New York: Simon and Schuster) 1975: 31.
[ii] Ibid.: 110.
[iii] Ibid.: 104-105.
[iv] A "Winter Soldier Investigation" foi um acontecimento promovido pelos média e patrocinado pela Vietnam Veterans Against the War (Veteranos do Vietname contra a Guerra) destinado a tornar conhecidos os crimes de guerra e atrocidades levadas a cabo pelas forças armadas dos EUA e seus aliados no decurso da Guerra do Vietname. O encontro de três dias reuniu 109 veteranos e 16 civis e teve lugar em Detroit (Michigan), entre 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 1971 (Nota do tradutor).
[v] Ibid.: 110.
[vi] Ibid.: 32.
[vii] Ibid.: 99.
[viii] Ibid.: 101.
[ix] Nome depreciativo dado pelos americanos aos sudueste asiáticos (Nota do tradutor).
[x] Jacqueline E. Lawson, "'She's a pretty woman... for a gook': The Misogyny of the Vietnam War," in Philip K. Jason, ed., Fourteen Landing Zones: Approaches to the Literature of the Vietnam War. University of Iowa Press. 1991: 17.
[xi] Ibid.: 4.
[xii] Ibid.: 18.
[xiii] Brownmiller: 32.
[xiv] Desejo agradecer a Susan Jeffords pela sua perspective de quem ocupa o centro destas representações de violação. O seu artigo em Discourse, "Performative Masculinities, ou 'After a few times you won't be afraid of rape at all,'" discute-o em profundidade.
[xv] Michael J. Shapiro, The Politics of Representation. Madison: University of Wisconsin Press. 1988: xii.
[xvi] Ibid.
[xvii] Ibid.
[xviii] Ibid.
[xix] Vietnamita em sentido pejorativo (Nota do tradutor).
[xx] David Rabe, guião, Casualties of War (Columbia Pictures) 1989.
[xxi] Esta distinção entre justificação e motivação para a violação neste contexto não se destina a ser dura e rápida. Eu observei esta distinção nos filmes aqui tratados. Todavia, acredito que, mais frequentemente, tal como a linha entre sexo e violência, a linha entre o que é motivação e o que é justificação se esbatem. O racismo, por exemplo, articula-se como um factor de motivação para a violação na Guerra.
[xxii] Larry Heinemann, Paco's Story. New York: Penguin. 1986: 175.
[xxiii] Ibid.: 179.
[xxiv] Ibid.: 180.
[xxv] Brownmiller: 110.
[xxvi] Mark Baker, Nam. New York: William Morrow. 1981: 206.
[xxvii] Ibid.
[xxviii] Lawson: 3.
[xxix] Ibid.
[xxx] Esta distinção entre sexualidade e género foi por mim abordada em pormenor num artigo sobre as representações do desejo heterosexual feminino: É igualmente uma distinção importante para as teorias gays e lésbicas. Veja-se Gail Rubin, "Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality," in Carol S. Vance, ed., Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Boston: Routledge & Kegan Paul. 1984; e igualmente Teresa de Lauretis, "Sexual Indifference and Lesbian Representation," in Theater Journal (May 1988).
1 Comments:
A propósito de livros sobre os EUA, Guerra, e violações:
New Book Details Mass Killings and Brutal Mistreatment of
Germans at the End of World War Two
http://www.ihr.org/newsletters/newsletter200706.pdf
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